25.4.06

on the road again / ainda pela estrada fora
nas profundezas de Benares, a Capital do Mundo

"Tomei o volante e conduzi com os meus próprios devaneios através de Linares, através de terras planas, quentes e montanhosas, através do fumegante Rio Souto la Marina perto de Hidalgo, e assim por diante. Espraiou-se diante de min um grande vale, de uma vegetação luxuriante, com plantações verdes. Grupos de homens viam-nos passar, do cimo de uma estreita ponte muito antiga. O rio corria interminávelmente. Depois subimos de altitude, até surgir de novo uma espécie de deserto. A cidade de Gregoria ficava em frente. Os rapazes dormiam, e eu estava sozinho na minha eternidade ao volante, e a estrada seguia a direito como uma flecha. Não era como conduzir pelo estado de Carolina, ou do Texas, ou do Arizona, ou do Ilinois; era como conduzir pelo mundo e a caminho de sítios onde finalmente nos conheceríamos a nós próprios entre os índios felás do mundo, a estirpe essencial do primitivo básico, uma humanidade gemente que se estende numa cintura em redor da barriga equatorial do mundo desde a Malásia (a grande unha da China) ao grande subcontinente da Índia, até à Arábia, passando por Marrocos, até aos desertos e selvas sempre identicos do México, e através das ondas até à Polinésia e ao místico Sião da Túnica Amarela, e sempre à volta, sempreà volta, de tal modo que se ouve o mesmo gemido dolente nos muros em escombros de Cádis, na Espanha, e à roda de vinte mil quilómetros nas profundezas de Benares, a Capital do Mundo. Esta gente era indiscutivelmente índia e não eram como os Pedros e Panchos das tontas patranhas da América civilizada - tinham as maçãs do rosto salientes e olhos rasgados e modos gentis; não eram idiotas, não eram palhaços; eram grandes índios a sério e eram a origem da humanidade e os seus pais. O mar é chinês, mas a terra é coisa de índios, tão essenciais no deserto da «história» como os rochedos no deserto da terra. E eles tinham consciência disso ao verem-nos passar, americanos presunçosos e endinheirados a divertirem-se na sua terra; eles sabiam quem era o pai e quem era o filho da vida antiquíssima da terra, e não teciam comentários. Pois quando se abater a destruição sobre o mundo da «história» e regressar uma vez mais o Apocalipse dos felás, como tantas vezes antes, as pessoas irão contempla-lo com os mesmos olhos nas grutas do México e nas grutas de Bali, onde tudo principiou, e onde Adão foi amamentado e ensinado. Eram estas as ideias que me ocorriam enquanto conduzia o carro na direcção da cidade quente e crestada de Gregoria."

Parágrafo total das pág. 355/356 de PELA ESTRADA FORA de JACK KEROUAC, na édição da Relógio d'Água, edição de 1998, tradução de Armanda Rodrigues e Margarida Vale de Gato.

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